Diabetes, o novo mal do século





Era o século II, nos primórdios da Era Cristã, quando o grego Arateus da Capadócia resolveu deixar para a posteridade uma descrição detalhada daquela doença estranha, que acometia um grupo pequeno de pessoas e provocava sede excessiva, boca seca, perda de peso e urina abundante. “Os pacientes nunca param de produzir água e o fluxo é incessante como a abertura de aquedutos”, escreveu Arateus. “Não se consegue impedi-los de beber ou de urinar.” Num lampejo de inspiração, Arateus chamou a tal doença de diabetes. Em grego, diabetes quer dizer “passar por”, “fluir através” – como se o líquido ingerido simplesmente passasse por dentro do organismo para sair logo depois. “O diabetes é uma doença terrível, não muito freqüente entre os homens, sendo um derretimento da carne e dos membros para dentro da urina”, afirmou.
No Oriente, médicos indianos, entre os séculos V e VI, também reportaram a existência de pacientes que urinavam exageradamente. E mais: mencionaram que a urina desses pacientes era adocicada. (Antes que você me pergunte como os indianos descobriram que o xixi tinha sabor doce, já adianto: pura observação. Formigas e insetos eram atraídos pela urina daquelas pessoas, que mais parecia mel.) Aqueles médicos registraram também que essa tal enfermidade atingia dois tipos de pessoas: algumas magras, que não sobreviviam durante muito tempo, e outras idosas e obesas. Séculos mais tarde, a doença passou a ser conhecida em todo o mundo como diabetes mellitus – o termo latino mellitus significa “doce”.
Faz bastante tempo, portanto, que a humanidade convive com a diabete – ou “o diabetes”, já que os dicionários grafam as duas formas como corretas –, uma doença crônica e incurável. Foi causa da morte de muita gente no passado e continua sendo, pelos mesmos motivos: desinformação e falta de tratamento adequado. Basta dizer que a diabete, hoje, responde por até 50% dos casos de problemas cardiovasculares, entre outras sérias complicações de saúde que poderiam ser prevenidas. É a principal causa de perda de visão em adultos nos países desenvolvidos e também no Brasil.
Se na época do grego Arateus a diabete era pouco comum, atualmente ganhou status de doença do século XXI. Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Diabete (IDF, na sigla em inglês) anunciaram que se trata de uma epidemia global emergente. “Existem no mundo inteiro 180 milhões de diabéticos já diagnosticados. Um número equivalente de indivíduos deve ter a doença mas ainda não sabe disso”, diz o diabetólogo belga Pierre Lefèbvre, um dos vice-presidentes da IDF. “A previsão é de que, dentro de duas décadas, esses números dobrem.” No Brasil, estima-se que, hoje, 12% da população seja diabética – nada menos que 20 milhões de patrícios.
Existem dois tipos de diabete, com causas e gravidade bem diferentes. A manifestação mais comum, chamada de diabete do tipo 2, atinge geralmente adultos e aparece com mais freqüência em pessoas obesas e sedentárias. Responde por cerca de 90% dos casos na atualidade – e é esse o tipo de diabete que tende a afetar cada vez mais gente por estar diretamente ligado ao estilo de vida. A outra manifestação da doença é diabete do tipo 1. Afeta um em cada nove diabéticos, em geral surge na infância ou na adolescência e acompanha a pessoa pelo resto da vida, obrigando-a a um controle permanente.
Para você, que é diabético e sabe que lidar com a doença requer um esforço pessoal tremendo, a ciência encontra meios de proporcionar mais qualidade de vida e se esmera na busca tanto de tratamentos menos desgastantes quanto da cura da doença, como essa reportagem vai lhe mostrar. Você, que não tem diabete e não entende por que seu amigo recusa a segunda tulipa de chope ou aquela fatia caramelada de pudim, perceberá, lendo a matéria, que, quando a diabete bate à porta, uma mudança total de hábitos se faz necessária. Aliás, ela também pode estar bem próxima de você. Saiba como se prevenir.
INIMIGO SILENCIOSO
A diabete é uma desordem no metabolismo da glicose e se caracteriza pelo excesso desse nutriente no sangue – o que vai de encontro aos padrões de bom funcionamento do organismo. Para ter idéia do impacto do distúrbio, você antes precisa entender como o corpo se comporta em condições normais. Todas as células precisam de energia para funcionar a pleno vapor. Essa energia vem dos alimentos, em especial dos carboidratos. Pães, massas e tubérculos, depois de digeridos, se transformam em açúcar – isto é, glicose –, que vai para a corrente sangüínea a fim de ser distribuído para as células do corpo todo, principalmente as do cérebro. A glicose, porém, só pode ser absorvida com a ajuda da insulina, um hormônio produzido pelo pâncreas especialmente para essa tarefa.
Trata-se de um processo metabólico vital. Células abastecidas funcionam de modo eficiente e permitem que você realize todas as suas atividades diárias, como dormir, trabalhar e se exercitar. O nível de açúcar no sangue, chamado de glicemia, se mantém equilibrado graças à atuação da insulina. A quantidade do hormônio aumenta ou diminui de acordo com a disponibilidade da glicose na corrente sangüínea. A cada missão cumprida, a insulina presente no corpo é degradada naturalmente. Por isso, novos estoques do hormônio precisam ser constantemente fabricados pelas células especializadas do pâncreas.
A diabete surge quando esse processo começa a apresentar falhas. Na diabete do tipo 1, por motivos ainda incompreendidos, o organismo passa a enxergar as ilhotas do pâncreas como estruturas estranhas e, por meio de um mecanismo imunológico, produz anticorpos para atacá-las (veja infográfico na pág. 45). Quando as ilhotas são destruídas, a insulina deixa de ser fabricada. Como conseqüência, as células não conseguem absorver a glicose e, esfomeadas, vão buscar energia em outro lugar. “O corpo começa, então, a investir contra as gorduras”, diz o endocrinologista José Egídio de Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes. “A queima de gorduras produz substâncias ácidas conhecidas como cetonas, que passam a se acumular no sangue.”
A acidose, como é chamado o excesso de cetonas no sangue, combinada com os altos níveis de açúcar na corrente sangüínea – em outras palavras, hiperglicemia –, provoca sintomas em cadeia. Há produção de um volume exagerado de urina para eliminar a glicose excedente. Aparece, então, uma sensação de sede excessiva, como tentativa do corpo de compensar a perda de líquidos. Mas isso não evita a desidratação. A pessoa perde peso, fica fraca, cansada e sente náuseas. Num intervalo de poucos dias, se não forem tratadas a tempo, a acidose e a hiperglicemia, juntas, podem levar ao coma diabético. “Como tudo acontece muito rápido, sem sinais prévios, o diagnóstico em geral é feito quando os sintomas já estão bem evidentes”, diz José Egídio. Quem tem esse tipo de diabete depende da aplicação de insulina e não sobrevive sem ela.
A diabete do tipo 1, descrita acima, ficou conhecida durante muito tempo como “diabete juvenil” por surgir com mais freqüência na infância e na adolescência. Hoje se sabe que essa doença pode aparecer também na idade adulta, embora não seja tão comum. Quando ocorre dos 25 aos 40 anos, suas características clínicas assemelham-se mais à diabete do tipo 2. Os cientistas acreditam que a reação auto-imune que agride as ilhotas do pâncreas deve ser desencadeada por fatores ambientais ainda não identificados. Existe uma predisposição genética para esse tipo de diabete (como se, em seus genes, estivesse escrito: “Você vai desenvolver diabete do tipo 1”). Contudo, não há um componente hereditário específico envolvido. Isso significa que você pode ter a doença, mesmo que ninguém na sua família seja diabético. “Trata-se de uma diabete esporádica”, diz o endocrinologista Daniel Giannella Neto, da Universidade de São Paulo (USP). Ao contrário do que muita gente pensa, nenhum dos pais é “responsável” pelo fato de o filho ser diabético.
As características da diabete do tipo 2 são bem diferentes. Ela ocorre quando as células dos músculos e do tecido adiposo se tornam resistentes à insulina fabricada pelo pâncreas. O hormônio continua sendo produzido como de hábito, mas não consegue cumprir sua tarefa. As células adiposas e musculares não aceitam mais o combustível – isto é, o açúcar – disponibilizado pela insulina. Com isso, os níveis de glicose vão aumentando progressivamente a hiperglicemia. Na maioria dos casos, o portador do tipo 2 não precisa repor insulina no início do tratamento. Ele consegue contornar a disfunção seguindo uma dieta alimentar balanceada, fazendo exercícios físicos e, se necessário, tomando medicamentos por via oral.
Apesar do jeitão brando, a diabete do tipo 2 avança sorrateiramente. A resistência à insulina é gradual e, por isso, os sintomas não aparecem de uma hora para outra. As alterações na glicemia podem se arrastar ao longo de meses ou anos sem que o indivíduo se dê conta. Aí reside o perigo. “A doença, no início, é assintomática. Como o paciente não sente nada, não procura um médico”, diz o endocrinologista Fadlo Fraige Filho, presidente da Associação Nacional de Assistência ao Diabético (Anad) e um dos diabetólogos mais atuantes do país. “Pesquisas mostram que, no Brasil, o diagnóstico só é feito de cinco a sete anos depois de a diabete do tipo 2 se instalar. Isso faz com que as pessoas fiquem sem tratamento durante um período longo e, por isso, desenvolvam complicações.”
A disfunção surge, em geral, a partir dos 45 anos de idade. A prevalência na população vai aumentando conforme o grupo etário. Dados do Ministério da Saúde para a década de 1990 revelam que a porcentagem de indivíduos de 60 a 69 anos com a doença equivalia a mais que o dobro da média brasileira (7,6%) na época. Portanto, quanto mais velho, mais propenso a esse tipo de diabete. Mas há exceções – com menos freqüência, o tipo 2 pode acometer também adolescentes e jovens. A gestação costuma sobrecarregar as ilhotas pancreáticas, que não conseguem dar conta da demanda de insulina. Surge a diabete gestacional. Mulheres que tiveram esse distúrbio apresentam um risco muito maior de desenvolver o tipo 2 no futuro.
Ainda não se sabe exatamente por que a resistência à insulina acontece, mas fatores como obesidade e sedentarismo parecem ter, de fato, relação com as falhas no metabolismo da glicose. Por isso, pessoas obesas que não praticam atividade física são fortes candidatas a esse tipo de diabete, ainda mais se tiverem parentes próximos com a doença. A hereditariedade desempenha um papel importante na predisposição ao tipo 2 – ao contrário do que acontece com o tipo 1. Se você tem pais, avós ou tios diabéticos, fique alerta: suas chances de desenvolver a diabete são grandes.
Assim como o estilo de vida, a genética também contribui para o aparecimento da doença. Mas isso ainda é um grande quebra-cabeça. “Sabemos que pelo menos 90 genes estão envolvidos na ocorrência da diabete, mas não conhecemos ainda a participação de todos eles”, afirma Daniel Giannella. “A manifestação da diabete vai depender de quais genes são, de como eles interagem entre si e de como reagem à pressão ambiental.” Isso vale também para os problemas decorrentes da doença. Todo paciente descompensado – como se denomina o diabético com flutuações constantes na glicemia – está sujeito a complicações de saúde a longo prazo (veja quais são essas doenças no infográfico da pág. 45). Mas o controle rigoroso não significa ausência total de problemas. “Existem determinantes genéticos que podem proteger o paciente de algumas complicações ou predispô-lo a outras”, diz Daniel.
Como você não sabe o que seus genes lhe reservam, a melhor garantia de bem-estar é a monitorização das suas taxas de glicose no sangue. “O normal é que a glicemia em jejum fique entre 70 e 110 miligramas por decilitro”, diz o endocrinologista Antônio Chacra, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
EFEITO DEVASTADOR
Tanto a diabete do tipo 1 quanto a do tipo 2 são doenças crônicas, com as quais os pacientes deverão conviver durante a vida toda. Crianças ou idosos, eles dependem do controle rigoroso das taxas de glicemia para não desenvolverem complicações degenerativas associadas à doença, como a cegueira e a falência dos rins. Não é tarefa fácil monitorar constantemente os próprios níveis de glicose na corrente sangüínea – o que inclui, por exemplo, picar o dedo ao menos uma vez por dia para examinar a dosagem de açúcar a partir de uma gota de sangue. Por mais que os atuais monitores de glicemia sejam práticos e eficientes, essa rotina de controle diário pode ser um tanto aborrecida. Para os insulino-dependentes, ou seja, os portadores da diabete do tipo 1, injeções de hormônios são necessárias, sempre. No tipo 2, como o pâncreas continua a produzir insulina, injeções devem ser aplicadas apenas em casos mais extremos.
“É duro conviver com a diabete, às vezes me sinto farto”, afirma o norueguês Bjørnar Allgot, outro dos vice-presidentes da IDF, diabético do tipo 1 há 30 anos. “Brinco com as pessoas: posso emprestar a minha diabete para você por algumas semanas? Realmente ter férias da doença é um dos meus maiores sonhos.” Apesar disso, Bjørnar segue à risca o seu tratamento. Postura bem diferente têm 23% dos diabéticos brasileiros, já diagnosticados com a doença, que, segundo estatísticas do Ministério da Saúde, não tomam os cuidados necessários para o controle da glicemia. Deixam a progressão da diabete ao deus-dará para depois sofrer com o aparecimento de uma trombose ou, no final da linha, com a necessidade da amputação de uma perna, por exemplo.
A falta de informação sobre os riscos da diabete, a pouca atenção às medidas de saúde preventivas (devido à mentalidade obsoleta de esperar que a doença apareça para depois tentar vencê-la) e o descaso com o tratamento podem, sim, levar o paciente diabético à morte prematura. “A diabete age como um assassino silencioso”, diz Pierre Lefèbvre. Nos países desenvolvidos, a doença é atualmente a principal causa de insuficiência renal, perda de visão e amputações não-traumáticas de pernas e pés. Dos pacientes que morrem por doenças cardiovasculares, entre 30% e 50% deles são diabéticos. Segundo a Federação Internacional de Diabete, a diabete tornou-se a doença que mais mata no mundo, principalmente por causa das suas complicações.
“A diabete afeta os vasos sangüíneos, tanto os grandes quanto os pequenos, e, conseqüentemente, todos os tecidos que são irrigados por eles”, afirma o cardiologista e nefrologista Celso Amodeo, presidente do Fundo de Aperfeiçoamento em Pesquisa em Cardiologia, órgão da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O excesso de açúcar no sangue provoca uma modificação na estrutura do LDL-colesterol, uma proteína encarregada de transportar o colesterol no sangue. Sem ser metabolizado pelo organismo, esse colesterol entra com facilidade na parede dos vasos sangüíneos, onde começa a formar placas até obstruí-los por completo. O primeiro sintoma pode ser um infarto agudo do miocárdio ou um derrame cerebral.
A aterosclerose – como se chama o processo de obstrução dos vasos sangüíneos – não produz sintomas nem dor. Tampouco acontece de uma hora para outra. Seus efeitos deletérios indicam que as coisas já não estavam indo bem há tempos (a glicemia alta demais, o acúmulo de colesterol no sangue). “O diabético apresenta um risco maior de sofrer um infarto em comparação com um não-diabético que já tenha enfartado”, diz Celso. “Por isso, além da glicemia sob controle, quem tem diabete deve manter seus níveis de gordura no sangue sempre baixos e cuidar da pressão sangüínea.”
Diabete e hipertensão aparecem freqüentemente associadas. A combinação dessas duas doenças significa perigo dobrado porque ambas são bastante nocivas para o sistema cardiovascular. O diabético pode ter predisposição genética para a pressão sangüínea elevada. Mas é bem possível que desenvolva hipertensão em decorrência da própria ação da diabete, fato que pode ser ainda mais grave uma vez que se trata de um indício de que os rins já foram comprometidos.
Os glomérulos, emaranhados de capilares sangüíneos que fazem a filtragem dos nutrientes dentro dos rins, também são progressivamente lesados em razão da hiperglicemia, como os demais vasos do organismo. Por causa disso, os rins não retêm mais as proteínas do sangue, que seguem direto para a urina. O tecido interno do órgão se expande, devido ao excedente de açúcar, comprimindo os vasos sangüíneos. A pressão arterial aumenta. O quadro se agrava até a falência total do órgão. “A diabete é a causa principal da entrada do paciente num programa de diálise, o tratamento com rim artificial”, diz Celso Amodeo.
Uma pesquisa realizada pela IDF e pela Fundação Internacional dos Lions Club, com 2 702 diabéticos de cinco países – Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Estados Unidos –, mostrou que a maioria deles não estava preocupada com complicações de saúde detonadas pela diabete nem fazia exames preventivos. Trata-se de um dado desconcertante. Afinal, segundo a mesma pesquisa, 74% das pessoas com diabete desenvolvem problemas microvasculares, ou seja, que afetam os órgãos irrigados pelos vasos miúdos, como rins e olhos.
“A diabete pode levar a deficiência visual de vários níveis, algumas delas irreversíveis”, diz o oftalmologista Paulo Henrique Morales, da Universidade Federal de São Paulo. O excesso de glicose no humor vítreo, uma substância gelatinosa que recobre o interior do olho, muda o índice de refração ocular e deixa o paciente com uma espécie de “miopia oscilante”. Isso ocorre com mais freqüência depois das refeições, quando os níveis de glicose se elevam. Mas os distúrbios mais graves são o glaucoma diabético, causado pela alta pressão ocular, e as retinopatias, doenças que acometem a camada interna do olho responsável pela formação das imagens. Entre elas, está o deslocamento da retina, que leva à cegueira. O exame de fundo de olho feito com regularidade pode detectar precocemente esses problemas.
O excesso de glicose no tecido nervoso pode gerar uma complicação grave chamada neuropatia. O paciente perde a sensibilidade dolorosa principalmente nos membros inferiores. Por isso, não percebe os pequenos traumas nos pés (o membro mais afetado), causados por topadas, uso de calçados inadequados, arranhões e machucados. Como os diabéticos apresentam uma baixa no sistema imunológico também causada pela hiperglicemia, correm o risco de que esses traumas se tornem ulcerações que evoluam depois para quadros mais graves. “Em 85% dos casos, as ulcerações precedem as amputações”, diz a endocrinologista Hermelinda Cordeiro Pedrosa, representante do Grupo de Trabalho Internacional sobre Pé Diabético. “Essa talvez seja a mais misteriosa complicação associada à diabete porque não conhecemos todos os fatores envolvidos.” Exames periódicos e visita ao podólogo minimizam o problema.
Fica evidente, portanto, que o monitoramento adequado da glicemia previne ou atenua as complicações tardias da diabete. Se o autocuidado inclui a adoção forçosa de um estilo de vida mais saudável, o diabético que adere ao tratamento vive mais e com qualidade. Mas há um número significativo de pessoas que também estão sujeitas às mesmas complicações que o portador de diabete e ainda não sabem disso. São os indivíduos que apresentam a chamada tolerância diminuída à glicose (IGT, na sigla em inglês) – em outras palavras, uma glicemia de jejum um pouco mais alta que o normal, entre 110 mg/dl e 126 mg/dl, mas que ainda não é diabete.
Durante um bom tempo, a IGT foi considerada apenas um estágio anterior à ocorrência da diabete sem maiores repercussões. Hoje se sabe que a IGT também provoca efeitos deletérios no organismo. Os cientistas constataram uma forte correlação entre a tolerância diminuída à glicose e as doenças cardiovasculares. De acordo com dados do Instituto Internacional de Diabetes, um centro australiano de pesquisas ligado à Organização Mundial de Saúde, o problema afeta um em cada sete adultos com mais de 40 anos de idade. Existem cerca de 200 milhões de pessoas com IGT no planeta. Dessas, 50% vão desenvolver a diabete do tipo 2 dentro de, pelo menos, dez anos. No Brasil, quase 8% da população tem IGT. Como saber se você é um deles?
MUDANÇA DE HÁBITO
Durante o mês de março de 2001, o Ministério da Saúde promoveu a Campanha Nacional de Informação e Identificação de Portadores de Diabete e Hipertensão com o objetivo de alertar a sociedade sobre os sintomas e riscos dessas doenças. Postos de saúde de todo o Brasil ofereceram o teste de glicemia para checar a taxa de açúcar, em jejum, no sangue. Perto de 21 milhões de brasileiros foram testados e, desses, um milhão recebeu diagnóstico de diabete, sendo encaminhado para tratamento. “Atividades educativas voltadas para a diabete devem ser realizadas continuamente”, diz Fadlo Fraige, que participou da elaboração do programa. “A população precisa se conscientizar da importância do diagnóstico precoce e, principalmente, da prevenção.”
Eis a palavra mágica: prevenção. Se você ficou assustado com tudo o que leu até agora, saiba que a história sombria da diabete, pontilhada por ataques silenciosos e efeitos devastadores, pode ser bem diferente se uma atitude preventiva for tomada o quanto antes. Essa atitude começa pela adoção de hábitos alimentares saudáveis e pela prática regular de atividade física.
Parece balela? Então, veja os resultados do Programa de Prevenção à Diabete, realizado pelo Instituto Nacional de Saúde, dos Estados Unidos, durante dois anos e meio. O programa, concluído em 2001, acompanhou mais de 3 200 homens e mulheres com tolerância diminuída à glicose, a IGT. Os participantes foram divididos em três grupos. O primeiro, de controle, ouviu recomendações sobre a necessidade de alterar o estilo de vida para evitar a doença. O segundo, o de intervenção farmacológica, recebeu a droga metformina por via oral para testar seu caráter preventivo. E o terceiro grupo, o da mudança efetiva de hábitos, teve de seguir um programa de exercícios físicos e uma dieta balanceada. Os dados comprovaram que largar o sedentarismo e comer direito podem prevenir, em 58% dos casos, o aparecimento da diabete. A droga metformina reduziu em 31% os riscos de ter a doença.
“A atividade física é fator fundamental tanto na prevenção quanto no tratamento da diabete, desde que praticada de maneira regular e moderada”, diz Mário Maio Bracco, especialista em atividade física da Unifesp. “O indivíduo que tem antecedentes familiares e leva a sério um programa de exercícios físicos, consegue retardar o aparecimento da doença e diminuir as chances de ter complicações.” O sedentarismo, ao contrário, favorece o aparecimento precoce tanto da diabete quanto dos problemas.
Meia hora diária de malhação bastam para os benefícios aparecerem. Vale subir escadas, caminhar, nadar, andar de bicicleta. Para quem depende de insulina ou já tem alguma complicação, como o pé diabético, a atividade física precisa ser monitorada por uma equipe multidisciplinar. Os exercícios físicos têm relação direta com o metabolismo, por isso são tão bem-vindos. A atividade física diminui a necessidade da insulina e aumenta a tolerância à glicose. “Trata-se de um grande benefício à saúde tanto para quem não tem a diabete e nem virá a desenvolvê-la, quanto para quem é diabético ou tem predisposição para a doença”, diz Mário.
A atitude preventiva passa também pela correção dos hábitos alimentares, essencial para a manutenção das taxas ideais de glicemia e também para evitar a obesidade. “Dieta virou sinônimo de privação quando, na verdade, significa maneira saudável de se alimentar”, diz a nutricionista Ana Maria Lottenberg, da Liga de Diabetes do Hospital das Clínicas de São Paulo. O cardápio ideal – para diabéticos, não-diabéticos e pessoas com propensão à doença – equilibra as quantidades de carboidratos (que vão se transformar em glicose) e gorduras (que, em excesso, levam ao aumento de peso).
“A recomendação para o diabético é que ele coma 55% das calorias na forma de carboidratos, 15% de proteínas e, no máximo, 30% de gorduras”, afirma Ana Maria. Essa recomendação é exatamente a mesma para pessoas que não têm diabete e desejam alimentar-se de forma correta. As fibras, presentes nos cereais, nas frutas, nas verduras e também nos carboidratos, são sempre bem-vindas. “Elas retardam a absorção da glicose”, diz a nutricionista. “Se você tem uma alimentação rica em fibras, a glicose chega ao sangue lentamente e assim evita a ocorrência de picos.”
Por razões óbvias, diabéticos e portadores da IGT devem evitar alimentos ricos em açúcar, em especial sacarose. Açúcar refinado ou mascavo, o melaço, caldo de cana e mel são rapidamente absorvidos e chegam com velocidade à corrente sangüínea. O alerta vale para bolos, doces e bebidas que levam esses ingredientes. Mas isso não significa nunca mais provar um quindim como o da capa desta edição. “O paciente pode comer um doce de vez em quando desde que troque por um carboidrato”, diz Ana Maria. Frutas também são permitidas, mas em quantidade pequena.
Parece missão impossível ser diabético numa sociedade que valoriza a fartura e considera como “coisas boas da vida” justamente o que o portador da diabete deve evitar ou restringir. Você pode parecer um extraterrestre quando toma um suco com adoçante enquanto seus amigos bebem rodadas de chope. Ou se o seu prato destoa dos demais no abundante almoço de domingo em família. A situação é mais difícil para as crianças e os adolescentes que muitas vezes acham tremendamente injusto não poder comer e beber o mesmo que os amigos.
“É fundamental ter em mente que todas as pessoas têm limitações. O diabético precisa conhecer as limitações impostas pela doença e pelo tratamento, aprender a conviver com elas e perceber que pode estar bem assim”, diz a psicóloga Fani Eta Korn Malerbi, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
O QUE HÁ DE NOVO
Apesar de não haver uma cura definitiva para a diabete, os tratamentos atualmente disponíveis mostram que é possível manter a qualidade de vida, mesmo com as dificuldades trazidas pela doença (veja infográfico na pág. 49). “O transplante de pâncreas é, por enquanto, a única alternativa de cura para o diabete do tipo 1, que depende da insulina”, diz o cirurgião Tércio Genzini, da equipe de transplantes do Hospital Beneficência Portuguesa, de São Paulo, e de mais outros dois hospitais. Muitas vezes, ele é realizado em conjunto com o transplante de rins nos pacientes que apresentam insuficiência renal por causa da diabete. Tércio e seus colegas já realizaram mais de uma centena de transplantes e têm colhido resultados bastante satisfatórios. “O transplante permite uma sobrevida maior ao diabético e, na maioria das vezes, um controle total sobre a glicemia já que o pâncreas está saudável”, afirma ele. Apesar de uma rede ampla de hospitais realizar o procedimento, o transplante não é recomendado a todos os diabéticos. Os mais indicados para passar pela cirurgia são os diabéticos insulino-dependentes que têm dificuldades em controlar a glicemia e já apresentam algum tipo de complicação.
Uma alternativa bem menos invasiva já está sendo usada, ainda com caráter de pesquisa, no Canadá, nos Estados Unidos e na Itália. Trata-se do transplante de ilhotas pancreáticas, uma opção para os pacientes com diabete lábil, isto é, de difícil controle. As ilhotas são retiradas de pâncreas de doadores, tratadas em meio de cultura e, com ajuda da ultra-sonografia, são inseridas com uma agulha numa das veias que saem do fígado, a veia porta. O transplante tem cerca de 85% de eficiência após um ano e exige medicamentos que controlem a rejeição. “Existem ainda muitos detalhes que precisam ser aperfeiçoados. Mas a técnica é bastante promissora”, diz a bioquímica Mari Cleide Sogayar, do Instituto de Química da USP, coordenadora das pesquisas com ilhotas realizadas em parceria com o Hospital Albert Einstein, de São Paulo. “Estamos em condições de encarar esse procedimento.” Os primeiros testes clínicos no Brasil devem começar em poucos meses.
Também está em fase de testes o chamado “pâncreas artificial”, um dispositivo composto de um sensor que mede o nível de açúcar no sangue, introduzido na veia jugular, ligado por pequeno cabo a uma bombinha de insulina implantada na cavidade abdominal. Quando o sensor detecta elevação da taxa de glicose sangüínea, a bombinha libera a quantidade necessária de insulina. O registro das oscilações na glicemia fica na memória do aparelho. Por enquanto, os dez pacientes que receberam o dispositivo precisam ir semanalmente ao hospital para comparar as taxas registradas na bombinha com as medições habituais dos níveis de glicose. “Elas têm sido equivalentes em 95% dos casos”, diz o diabetólogo Eric Renard, do Hospital Lapeyronie, de Montpellier, na França, pioneiro no procedimento. “Quando o software for aperfeiçoado, o pâncreas artificial poderá funcionar automaticamente sem necessidade de o paciente picar o dedo todos os dias para monitorar a glicemia.”
Uma novidade que deve chegar no mercado no ano que vem é a insulina inalada, que promete substituir as injeções do hormônio antes das refeições. O dispositivo é semelhante ao inalador usado por pessoas com asma. A insulina é absorvida pelos pulmões e logo cai na corrente sangüínea. “As medicações que contêm uma substância chamada rosiglitazona também são muito promissoras”, diz Antonio Chacra, da Unifesp. “Essa substância deixa o organismo mais sensível à ação da insulina, o que ajuda muito no tratamento da diabete do tipo 2. Talvez com o uso dessas novas medicações seja possível bloquear a progressão da doença.” Recentemente, o Ministério da Saúde aprovou o uso do Xenical, um conhecido medicamento contra a obesidade, como outro aliado no controle da diabete do tipo 2. A droga age diretamente no intestino, impedindo a absorção de 30% da gordura ingerida, e promove a redução de 5% da massa corporal.
Esses novos tratamentos mostram que a vitória definitiva sobre a diabete pode estar próxima. Depende do paciente fazer a sua parte. “A diabete é uma doença que exige um engajamento total do paciente no cuidado de si mesmo”, diz o endocrinologista e psicoterapeuta Eliézer Molchansky, de Campinas, interior de São Paulo. “Com o apoio da família, a conscientização sobre sua nova condição de saúde e a confiança no tratamento que está seguindo, é possível encarar a doença como uma aliada na busca por uma vida mais saudável.” Aos que não têm diabete (ainda), fica a mensagem: mude seu estilo de vida enquanto é tempo. Você pode ganhar uma vida mais longa e saudável – além do direito de saborear (com moderação) alguns dos maravilhosos docinhos que ilustram essa reportagem.

Frases

A doença cresce no vácuo da desinformação e da falta de tratamento
Em poucos dias, a acidose e a hiperglicemia podem levar ao coma diabético
Obesidade e sedentarismo são as principais causas da diabete tipo 2
A diabete é hoje a doença crônica que mais mata no mundo
A palavra mágica para quem tem medo de diabete: prevenção

Raio x da diabete

Os dois tipos de diabete têm sintomas parecidos, mas causas bem diferentes. Saiba por que a doença surge e veja os danos que a diabete não-controlada faz ao corpo
DIABETE DO TIPO 1
Sem motivo aparente, o sistema imunológico inicia um ataque às ilhotas pancreáticas. Anticorpos aniquilam as células produtoras de insulina. Com isso, o pâncreas não consegue mais fabricar o hormônio. Surge a diabete do tipo 1, que se caracteriza pela quantidade ínfima de insulina para um volume grande de açúcar no sangue
SITUAÇÃO NORMAL
As células do corpo precisam da glicose para trabalhar direito. Mas só conseguem absorvê-la com a ajuda da insulina, um hormônio produzido pelos agrupamentos de células beta da superfície do pâncreas, chamados de ilhotas
DIABETE DO TIPO 2
A diabete do tipo 2 aparece quando as células do tecido adiposo e dos músculos passam a não aceitar a insulina que o pâncreas produz. Tornam-se resistentes ao hormônio e, por isso, não conseguem aproveitar a glicose presente na corrente sangüínea. Mesmo que o pâncreas aumente sua carga de trabalho, sobra açúcar no sangue
OLHOS
O excesso de açúcar deixa as paredes dos capilares oculares tão espessas que o sangue não consegue passar para outras áreas da retina. Os novos vasos, formados às pressas para reverter a situação, podem provocar hemorragias no vítreo, uma espécie de geléia no interior do olho, ou ainda o descolamento da retina por tração, causando a cegueira
DENTES
A hiperglicemia continuada leva à baixa no sistema imunológico. Com isso, o paciente fica mais suscetível às infecções bucais, como a candidíase (o popular sapinho), ou à inflamação da gengiva. Quando a glicemia está fora de controle, o hálito ganha um aroma de maçã podre
CORAÇÃO
A glicose em excesso no sangue modifica a forma da LDL, a proteína que transporta o colesterol. Alteradas, as LDL passam a depositar esse colesterol nas paredes dos vasos, formando placas até a obstrução completa. Isso pode levar a um infarto ou derrame. A hipertensão agrava o quadro
RINS
A hiperglicemia lesa os glomérulos, aqueles emaranhados de capilares responsáveis pela filtragem do sangue dentro dos rins. O tecido interno dos rins cresce anormalmente com o suprimento extra de açúcar e passa a comprimir os glomérulos, detonando um a um até a falência completa dos rins
PÉS
O excesso de glicose leva a uma disfunção nos nervos. O paciente perde a sensibilidade dolorosa e, por isso, não percebe que traumas no pé – como topadas ou arranhões – geram ulcerações graves. A circulação nos pés diminui e isso pode evoluir para gangrena

Por uma vida mais doce

Curar a diabete ainda não é possível. Mas há tratamentos - alguns já disponíveis, outros em fase de pesquisa - que prometem mais qualidade de vida aos pacientes
INSULINA INALADA
A insulina inalada pode substituir as injeções do hormônio antes das refeições. Basta regular a dosagem necessária. O dispositivo é parecido com o inalador usado por pessoas com asma. A insulina é absorvida pelos pulmões e logo cai na corrente sangüínea
INSULINA VIA PELE
Ainda em fase de testes, o patch – um pequeno dispositivo grudado na pele – lançaria insulina para o sangue em doses pequenas e constantes, necessárias no período de jejum. O aparelhinho faria furos microscópicos e indolores na camada externa da pele por onde, em seguida, a insulina seria injetada
TRANSPLANTE DE PÂNCREAS
São realizados transplantes isolados de pâncreas e também os simultâneos de pâncreas e de rins para pacientes com insuficiência renal diabética. Recomendado para diabéticos insulino-dependentes que têm dificuldades em controlar a glicemia e já apresentam complicações
BIOPÂNCREAS
Trata-se de uma bolsinha, colocada na altura do pâncreas, contendo de dois a três milhões de células beta que responderiam às alterações glicêmicas e produziriam insulina, como as ilhotas. O material ideal para o invólucro ainda está sendo pesquisado. Não há previsão de testes em humanos
PÂNCREAS ARTIFICIAL
O dispositivo é composto de duas partes: um sensor do nível de açúcar no sangue, introduzido na veia jugular, e uma bombinha de insulina implantada na cavidade abdominal. Quando o sensor detecta elevação da taxa de glicose sangüínea, a bombinha libera a quantidade necessária de insulina. Esse sensor ainda está sendo aperfeiçoado a fim de que o dispositivo funcione de modo automático
TRANSPLANTE DE ILHOTAS
As células beta são retiradas de pâncreas de cadáveres, tratadas em meio de cultura, e, com a ajuda de um ultra-som, são inseridas com uma agulha na veia porta, que sai do fígado. O transplante exige medicamentos que controlem a rejeição. Indicado para quem não responde bem à insulina, começará a ser testado no Brasil dentro de alguns meses


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