Para os brasileiros a culpa é sempre dos outros?



Juvêncio Marins é Juiz Federal do Trabalho, Escritor, Jornalista, Professor e Palestrante

No Brasil existe um inusitado fenômeno: o erro quase sempre é dos outros, os culpados são os outros, a coisa errada é culpa dos outros, a falta de solução para as questões pessoais ou mesmo nacionais é sempre dos outros. Mas, afinal, quem são os outros? Alguma entidade indefinida, sem cor, raça, estrutura, origem, etnia, compleição? Por que os outros são sempre os culpados? Os erros são deles? As culpas são deles? Nesse meio século de vida que percorri até o momento, percebi a quase completa inexistência nos brasileiros do sentimento de responsabilização, do entendimento de que além dos outros, nós também erramos, e me incluo, por ser brasileiro, por ser humano, por ser uma pessoa passível de erros e acertos. 

Entretanto, infelizmente, não é bem assim que acontece diariamente. Se o filho vai mal na escola, os pais transferem a responsabilidade para o professor, que a repassa para o coordenador ou diretor, que a transfere, também, multiplicando os resultados inclusive acrescentando as precárias condições de trabalho, os baixos salários, a insegurança pública, as preocupações com a própria família, e tudo isso ele entrega como culpado o governo, que por sua vez, logicamente, repassa para a crise financeira internacional, as conturbadas relações com sindicatos, os problemas da economia e, por fim, ao Congresso Nacional. Este, ao receber a culpa, a devolve tão velozmente quanto um tenista, dizendo: ‘somos o retrato da sociedade’.

Nesse ponto, talvez os congressistas tenham razão.

Tal não ocorre apenas nas escolas. Nos hospitais, pinçando um único exemplo, imaginemos alguém que passou dos limites, bebeu a noite inteira, pegou o veículo, dirigiu sem reflexos perfeitos, atropelou e no final bateu o carro. Foi levado ao pronto-socorro público e lá os que o acompanham reclamam da culpa dos outros, dos médicos, dos enfermeiros, da falta de medicamentos, e, claro, do governo.

Essa situação de transferência está enraizada em nossa sociedade de tal maneira que não enxergamos mais os nossos próprios erros. Chegamos ao ponto de atribuir a culpa até às coisas inanimadas como um sapato ou um vestido, ao afirmarmos, por exemplo: ‘o sapato furou’ ou ‘o vestido rasgou’. Ora, será que o sapato e o vestido ganharam vida e se automutilaram?

Vemos culpa a todo instante nos outros como se a vida fosse uma gigantesca teoria da conspiração, um complô destinado a colocar o país sob o jugo de nações estrangeiras, por exemplo, esquecendo que deixamos de lado qualquer vestígio de civilização, quando abdicamos da nacionalidade, de um simples texto sem uma frase ou uma palavra estrangeira, sem, claro, nenhum xenofobismo. A culpa nunca é nossa, é sempre dos outros. Eles, os braços e tentáculos de uma supra-entidade não identificada ou, às vezes identificada coletivamente. Mas a culpa não é nossa por nada.

Não somos nós que tentamos subornar os guardas de trânsito. Não somos nós que nos excedemos com bebidas antes de dirigir. Não somos nós que ingerimos fumaça dia após dia sem desistir do tabaco. Não somos nós que consumimos drogas alimentando o tráfico e ampliando as possibilidades de mais e mais confrontos entre policiais e marginais, sujeitando quem quer que esteja perto às ‘balas perdidas’. Não somos nós que gastamos milhares de reais para banhar ou lavar nossos cãezinhos, mas negamos dez centavos ao garoto que lava a vidraça dos nossos veículos. Não somos nós que jogamos fora alimentos ainda frescos, esquecendo e fazendo pouco caso dos milhões de famintos espalhados pela nação. Não somos, de maneira alguma, que discutimos sobre o dedo mindinho de Neymar, nem lembrando da devastação da Amazônia, da destruição do patrimônio público e todas mazelas similares. Não somos nós – enquanto funcionários públicos, que apontamos o dedo para os políticos e olvidamos que usamos carros públicos, cuja frota nacional daria para construir 300 mil casas populares a cada ano ou construir 60 mil escolas de ensino médio a cada seis meses. Não somos nós, de modo algum, gritamos aos quatro ventos sermos ‘autoridades’ nisso ou naquilo, enquanto esquecemos que todo poder que eventualmente dispomos nos é entregue pelo povo, pelo contribuinte, por cada um de nós.

Nós nunca estamos atrasados, é o relógio que não despertou. Nós nunca judiamos de negros, judeus, gays, nordestinos, japoneses, carecas, gordinhos (as) ou mulheres, mesmo que contemos piadinhas sem graça ou sejamos contrários às cotas como um mínimo pedidos de desculpas pelos quase 400 anos de escravidão com estupros e seres humanos tratados pior do que animais. Não, não temos culpa de nada. Absolutamente nada.

Não deve ser assim. Culpas e problemas ocasionais têm dono, tem proprietário. Estamos num país cuja civilização ainda está em formação, e os desencontros são aceitáveis em certa medida. Definitivamente, atribuir a culpa aos outros sem verificar nossa parcela não nos levará a bom termo.

Alterando o jargão antigo referente às saúvas, ou cada brasileiro assume sua própria culpa, ou a culpa assumirá o Brasil. Com faixa e tudo, sem deixar nem o botão do desligue por perto.

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