Mundo inteligente e ambiental: Ideias geniais não funcionam em sistemas ruins
A ideia é genial: vender anúncios publicitários em espaços públicos
da cidade e, com o dinheiro, viabilizar uma rede de bicicletas para as
pessoas. Essa rede tem pontos espalhados por diversos bairros, assim, o
usuário retira a bicicleta perto de sua origem e a devolve perto de seu
destino. Em 2005, a prefeitura de Lyon colocou essa ideia em prática:
inaugurou o sistema de aluguel de bicicletas Velo’v, influenciando
depois diversas cidades pelo mundo como Paris, Londres, Nova Iorque,
Barcelona, Cidade do México e Rio de Janeiro. Em 2012, a ideia chegou a
São Paulo. Só que a prefeitura daqui cometeu um erro grave: colocou uma
ideia genial para funcionar em um sistema ruim. Hoje, em vez de termos
uma rede de bicicletas de aluguel, temos duas, concorrentes. E nessa
disputa, perdem os ciclistas.
Mas o que foi que aconteceu?
Em Lyon, o sistema tem dois personagens principais. De um lado está o
departamento de transportes da prefeitura da cidade, que define
estrategicamente onde as bicicletas devem ser implementadas. De outro, a
JCDecaux, uma empresa de publicidade que media a comercialização de
anúncios em pontos de ônibus e outros mobiliários urbanos e provê a rede
de bicicletas e o gerenciamento do sistema. A prefeitura cuida para que
a rede cresça atendendo às necessidades das pessoas. A JCDecaux cuida
para que o sistema siga aquecido economicamente.
Em São Paulo, o sistema de aluguel de bicicletas foi regulamentado
pela Secretaria Municipal de Transportes e pela Comissão de Proteção à
Paisagem Urbana (CPPU), o órgão que regula a publicidade na cidade. Quem
me explicou o funcionamento do processo foi o Daniel Guth, que é
consultor de mobilidade, foi coordenador da implementação de ciclofaixas
de lazer, viabilizou o mapeamento de ciclorrotas e coordenou o programa
Escolas de Bicicleta em São Paulo.
Ele me disse que a nossa rede de aluguel de bicicletas não é uma
concessão por licitação, nem se trata de uma operação de sistema público
de transporte. Ela é celebrada pelo Termo de Cooperação, um instrumento
da lei Cidade Limpa usado para regulamentar outdoors, eventos,
intervenções em espaços públicos, etc. “O poder público não considerou a
rede de aluguel de bicicletas como um sistema público de transporte,
portanto, qualquer empresa, desde que tenha financiador ou patrocinador,
poderá demandar um termo de cooperação com o município e ter seu
próprio sistema de bike-sharing [aluguel de bicicletas]”, explicou Guth.
É o que já acontece. Hoje temos duas redes: o BikeSampa, patrocinado pelo Itaú, e o CicloSampa,
pelo Bradesco. E pior: há bairros em que os dois sistemas possuem
pontos, como Jardins e Vila Madalena. Pobre do ciclista, que entra na
gincana de só poder devolver bicicletas vermelhas nos pontos rubros e
laranjas nos alaranjados.
A diferença fundamental entre os sistemas de Lyon e de São Paulo está
na estratégia. O sistema de Lyon se beneficia da competição entre as
empresas. Quanto mais financiadores, maior e mais expandida será a rede
de bicicletas que serve a cidade. Em São Paulo, o sistema se prejudica
com a competição entre as empresas. Quanto mais financiadores, menos
conectada e mais confusa será nossa rede de bicicletas.
Outro ponto é que a publicidade comercializada em Lyon está espalhada
pela cidade. Em São Paulo, está na própria bicicleta, o que evidencia e
talvez cristalize a falta de unidade em nosso sistema. Quando a rede
não tem unidade, o sistema de aluguel de bicicletas vira o jogo de quais
marcas conseguem os melhores espaços publicitários na cidade, não de
quais bairros se beneficiarão das redes de bicicleta. E nem dá para
culpar os bancos por essa disputa. O problema inicial foi a estratégia
adotada pelo então prefeito Gilberto Kassab lá em 2012.
Até teria solução, a prefeitura poderia assumir a tarefa de desenhar
uma integração no sistema. Mas além dos complicadores óbvios – misturar
bicicletas laranjas e vermelhas – há uma incompatibilidade tecnológica
entre esses dois sistemas distintos, em que cada patrocinador já gastou
uma porção de energia e dinheiro.
Esse erro precisa ser compreendido como um alarme que demanda a
atenção de tudo mundo – prefeitura, empresas e civis. Estamos em um
momento importante da cidade, em que o Plano Diretor está na fase final de revisão, as Operações Urbanas aprovadas começam a desenhar suas obras de compensação (como o bicicletário do Largo da Batata) e os parklets estão
sendo regulamentados. Precisamos estar muito atentos a que tipo de
sistemas estão sendo desenvolvidos para colocar essas ideias em
práticas. Porque ideias geniais podem ser estragadas por sistemas ruins.
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