Meu primeiro bullying e os 6x0 da Argentina na Copa do Mundo de 1978


                                             Juvêncio Marins (J. Marins) é Escritor, Jornalista, Professor e Juiz Federal do Trabalho 
co-fundador do Movimento Libertologia no Brasil

Na tarde cinzenta daquela quarta-feira, 21 de junho de 1978, enquanto recordava de ter visto na Tv o anúncio do novo corte no orçamento da educação pública, através da boca miúda no rosto concentrado, pálido e esfíngico do paranaense Ney Braga, oficial da reserva e ministro da Educação do general-presidente Ernesto Geisel até o dia 30 de maio, ladeado pelo novo titular da pasta, eu caminhava apressado pela avenida Henrique Dias, ávido para atravessar a pista da avenida Tiradentes e finalmente avançar pela rua do Paraíso e alcançar a Escola Pública Estadual Constância de Medeiros, onde cursava o ginásio.

Apesar do clima de junho, eu suava aos píncaros e media cada passo como se estivesse caminhando ao patíbulo, afinal, algo semelhante me aguardava, conforme soavam os meus juvenis pensamentos. Vez ou outra algum mecanismo de autodefesa proclamava em minha mente que não teria nada a temer. Ora, faltavam dias, uma quinzena a ser percorrida e logo eu faria treze anos. Treze. Geralmente um belo número de sorte, como diria o ex-técnico Zagallo, que, naquele momento, certamente, devia estar tão ou mais ansioso do que eu, defronte a algum aparelho de televisão a cerca de mil e seiscentos quilômetros de distância, no Rio de Janeiro, preparando-se para assistir o duelo entre o Brasil e a Polônia, valendo vaga na final da Copa do Mundo FIFA, na Argentina, cuja seleção jogaria pela noite (diante do horário de Brasília), em Rosário, já sabendo do resultado da partida do escrete de Rivelino, Zico, Roberto Dinamite e do volante Toninho Cerezzo.

Eu estava louco por esse jogo. Futebol era talvez a minha única distração, além das viagens para Bom Jesus dos Pobres, no recôncavo, do amendoim do São João, dos gols de Beijoca no Bahia e dos livros surrados da enciclopédia Conhecer, da Abril Cultural, comprada com sacrifício por meu pai, Juvenal Oliveira (honrado com medalha de heroísmo na Segunda Guerra Mundial, pela FEB, da qual participou). Meu velho, ao nos entregar os livros, nos brindou com frases como: 'conhecimento é poder' e 'o saber e o gosto pelas letras serão os maiores legados que deixarei para vocês'. Bem, ele usou 'vocês' porque em nossa casa, além de mim, ele tinha outros nove filhos, quase um time, formado com minha mãe, Francisca.

Eu não tinha relógio, não tinha provas, mas tinha convicção de que estava atrasado uns cinco minutos, quando cruzei o pórtico da Constância de Medeiros e avancei para a sala, onde a turma inteira me recepcionou com olhares que navegavam da crítica até a ironia, passando logicamente pela expectativa. Era o meu dia de resolver um dos maiores dilemas já criados pelo homem, como o meu cérebro setentista matutava: solucionar uma operação de MDC.

O máximo divisor comum, como o mundo todo sabia, corresponde ao maior número divisível entre dois ou mais números inteiros. Nessa linha de pensamento, os números divisores são aqueles que ocorrem quando o resto da divisão fica igual a zero. Por exemplo, o número 12 é divisível por 1, 2, 3, 4, 6 e 12. Se dividirmos esses números pelo 12 obteremos um resultado exato, sem que haja um resto na divisão. Incrivelmente fácil, não é mesmo? Pois é. Mas, o Juvêncio de 1978 nem desconfiava o que significavam coisas como números primos. E, com a mente imaginativa e ficcional que tinha, acreditava piamente que MDC e MMC eram agentes que trabalhavam para a KGB do regime de Leonid Brejnev, secretário-geral do partido comunista da União Soviética.

Sentei-me e prescrutei os rostos em volta. Nenhum deles me passava qualquer sensação de ternura. Pareciam faces de pequenos demônios, louquinhos para me ver saltar as brasas espalhadas pela sala, exceto o de alguns colegas do time Base, como era conhecida a nossa equipe, nos intermináveis 'babas' jogados nas quadras do largo do Papagaio, nas cercanias do supermercado Paes Mendonça.

A professora se ergueu e anunciou:

- Juvêncio, venha até o quadro.

Olhei em volta e fiquei em silêncio. Ela repetiu:

- Juvêncio, venha.

Mirei o quadro. preenchido a giz com várias operações que eu deveria resolver em cerca de 10 minutos, o tempo do exame. Meus olhos vislumbraram os números como se fossem as equações feitas pela NASA para levar o homem até a Lua, naqueles computadores que enchiam um prédio inteiro, e que hoje cabem num pendrive de 32 Gb. Ela perdeu a paciência:

- Vem ou não vem, J-U-V-E-N-C-I-O? 

- Eu?

- Claro que é você. Existe outro Juvêncio aqui?

Um colega ao lado completou:

- Professora, a senhora errou na pergunta. O certo seria: existe outro Juvêncio no bairro?

Ela nem esperou o estouro de risos abafar:

- Sim, é verdade. Aliás - disse, cruzando os braços. - Você sabe quantas pessoas têm o mesmo nome que você?

Neguei com a cabeça. Ela completou:

- Duas mil e quinhentas aproximadamente, segundo o IBGE.

Eu murmurei:

- Em Salvador?

Ela sufocou o riso ao responder:

- No Brasil. - e prosseguiu. - Por isso, venha cá agora, Juvêncio.

Caminhei devagar com o pensamento fixo no privilégio de ter um nome praticamente exclusivo. Mal sabia que, quase quarenta anos depois, o mesmo IBGE, em 2010, anunciaria o número de pessoas com igual nome ao meu: pouco mais de três mil e seiscentos exemplares de um nome praticamente em extinção. Entre 1999 e 2010 somente 60 pessoas foram registradas com o nome. Sob o risco de ser extinto ou não, o Juvêncio de 1978 estava convencido que o primeiro passo para a autoestima é gostar de si mesmo, do nome, do jeito de andar, da raça e das origens. Aquele Juvêncio não sabia, mas as palavras da professora e os risos desdenhosos dos colegas que lançavam apelidos feitos com o seu nome, forjavam o seu futuro, tornando-o persistente, obstinado e proprietário de inabalável autoestima. Inspirei e disse aos meus ansiosos botões: "calma, esse Juvêncio aqui vai superar mais essa".

Enquanto andava, percebia o jeito inquisidor da professora. Três vezes eu havia conseguido adiar o teste. Agora estava ali, olhando-me com o mesmo olhar de Voldemort, instantes antes de Harry Potter se levantar, ressurgindo das cinzas, no último livro da popular série de J. K. Rowlling. 

- Ótimo - ela disse, entregando-me o giz com a mão magra e branca. - Agora pode começar.

Fiz uns rabiscos e em seguida os apaguei. Tornei a rabiscar. Sacudi a cabeça. Olhei em volta. Cocei o pescoço. Girei. Empalideci. Solucei. Enfim, senti a tábua do chão abrir quando alguém puxou o coro, logo entoado por quase toda a sala:

- Ele não sabe. Burro, burro, burro!

A professora permitiu que aquilo perdurasse por uns minutos e, quando parecia disposta a cessar o burburinho, eis que veio a salvação, proferida pelo bramido do pessoal da sala ao lado:

- Vai começar o jogo do Brasil, não tem mais aula!

Minha sala assumiu o caos. Pastas e mochilas foram fechadas com velocidade semelhante a de Emerson Fittipaldi, conduzindo o carro F5A da equipe brasileira patrocinada pela Copersucar.

- Vamos para a final - alguém disse. 

A professora não conteve os alunos e logo a sala esvaziou, sem que eu tivesse realizado o teste. Suspirei. Salvo mais uma vez, pensei. Catei minhas coisas sem nem olhar para o quadro. Antes de sair, senti sua mão ossuda no ombro e me virei. Ela estava diferente. Agachou-se, pois era muito alta, e disse:

- Peço desculpas.

- Professora, eu...

- Peço desculpas. Exagerei. Não tenho esse direito.

- Sim, professora. Eu também peço... não fiz o teste... quando quer que eu faça novamente?

Ela olhou em volta. Os colegas voavam para fora como se a peste em forma de gente estivesse no lugar, caçando incautos pelos cabelos.

- Conversei com sua professora de história e também com a de Português.

Eu suei. Ela continuou:

- Matemática não é para você, rapaz. Você será de Humanas.

Depois, ela girou, levantou-se e foi até o quadro:

- Quero muito ouvir falar bem desse moço chamado Juvêncio que está diante de mim, certo?

Meus olhos marejaram. Ela prosseguiu:

- Que tal ser, no futuro, o único Juiz chamado Juvêncio no Brasil?

Eu pus a mão fechada sobre a minha boca, para esconder, mas os soluços vieram. Ela notou, mas silenciou. Eu recuei. Ajeitei minhas coisas. Tornei a pedir desculpas e caminhei, parando na soleira. Olhei para ela, que estava virada para mim, com o sol pálido iluminando-lhe a face.

- Muito bom isso - ela disse, sob o ecoo dos gritos com os placares futuros do jogo do Brasil.

- O quê? A Copa do Mundo?

Ela sorriu e profetizou:

- Que Copa... nada de copa. Juiz. Você vai chegar lá.

Eu agradei, ela concluiu:

- Basta acreditar, rapaz.

Dizendo isso, ela sentou. Eu sacudi a cabeça algumas vezes e caminhei de costas. Já no corredor, desvencilhando-me do turbilhão humano formado pelas dezenas de estudantes do Constância de Medeiros, que ululavam como apaches do Arizona antes do enfrentamento com os casacas-azuis do Exército norte-americano, eu repaginava suas palavras e refletia acerca da extensão delas, misturando, pouco a pouco, os pensamentos com a escalação da seleção, pedindo a Deus para fazer o capitão James T. Kirk e o vulcano Spock, com sua expressão de saudação 'vida longa e próspera', se materializarem diante de mim e me teletransportarem, como em Jornada nas Estrelas, para que chegasse em casa antes da chuva que parecia prestes a desabar, para justificar o insuportável mormaço. Não estava certo, mas intuía que o time brasileiro treinado por Cláudio Coutinho golearia a Polônia e nos levaria novamente à final, como em 1970, fazendo todo o país esquecer o empate em zero a zero, dias atrás, com a Argentina do esfumaçado técnico Cesar Luis Menotti e do artilheiro Mário Kempes.

Mal sabia que os argentinos do general Jorge Rafael Videla estariam preparados para qualquer que fosse o resultado do placar da partida do Brasil de Rivelino contra a Polônia do envelhecido Lato. Afinal, Quiroga, o goleiro do Peru, era argentino. 




  








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