Crônica de J.Marins: O homem que procurou o inferno


Quero falar para vocês, na crônica de hoje, sobre o inferno. Sim, o inferno. Mas, não aquele inferno repleto de brasas, precipícios, lagos de fogo, enxofre, fumaça e demônios, mais ou menos como previsto por Dante. Nada disso. Sem diabinhos arteiros e maliciosos. Isso é coisa para religião, e este, definitivamente, não é um blog dedicado a assuntos religiosos, tampouco o autor, por óbvio. Também não se trata de inferno esotérico, na melhor acepção da palavra, o inferno astral. Muito menos vamos conversar acerca de diabruras originadas nas tessituras mitológicas tão decantadas nos livros e na ficção poética.

Vamos falar do inferno. Na verdade, trataremos da história de uma pessoa: o homem que decidiu encontrar o inferno. O cara que, num belo dia, reuniu a família e comunicou que iria conquistar o inferno.

Certa vez, há coisa de muitos anos, existiu esse homem. Um cara multi-milionário, empresário com posses em toda parte do mundo, dinheiro a perder a conta, mansões, dono de indústrias, de bancos poderosos, proprietário de vasta rede de emissoras de rádio, jornais e televisão, autoproclamado Senhor da Riqueza, e alcunhado pelos próximos, inclusive os tradicionais puxa-sacos, como o homem mais rico de todos os tempos.

Ele, de fato, tinha poder. Tinha riquezas quase infinitas. Conquistava o que desejava. Sua mulher, era a mais bonita, uma ex-Miss Universo. Seus filhos, os mais atléticos, saudáveis e desejados rapazes. Não existia uma só mulher no país que não estivesse afim deles. Ofereciam-se aos montes, como abelhas dando em cima do pote de mel entreaberto. Sua casa, bem, casa não, seu palácio, era a mais imponente construção de toda a nação, quiçá do continente, sem paralelo, deixando no chinelo o castelo da Rainha da Inglaterra e o Taj Mahal.

Não parava por aí o seu poderio. Não. Ia muito além. Ele era influente, em todos os sentidos. Seu poder era enigmático e magnético. Se mandava sentar, seus seguidores sentavam, Se mandava levantar, seus adeptos levantavam. Se dissesse para baterem asas e voarem, eles assim fariam, mesmo que o voo terminasse no despenhadeiro. Podia tudo. Era dessa maneira que se comportava. E era nisso que acreditava. Tinha ao seu dispor as melhores mentes da época, os mais importantes pensadores, os mais sensacionais cientistas e inventores, as mais inacreditáveis condições intelectuais para levar adiante o que arquitetou. A essas pessoas, encomendou uma estratégia, e delas recebeu o plano que o conduziria pelo mundo em busca do território onde, conforme acreditava, seria o inferno.

O Senhor da Riqueza estava convencido que existia um caminho, uma rota, e que o inferno era um lugar físico, com habitantes físicos, com normas, com regramentos, com uma civilização. E não mediu esforços para encontrar o inferno. Se o fizesse, ainda que isso lhe consumisse anos da vida, provaria a existência do inferno terrestre, dando azo à cantilena de que o inferno está na Terra.

Na visão dele, se existia a Europa, a África, a Ásia, a Oceania e as Américas, tinha que existir o inferno. E, existindo, ele o conquistaria, o colocaria no extenso rol de suas propriedades. O exploraria e diria para todos: eu sou o dono do inferno. Simples assim. Era o tipo de homem que quando botava algo na cabeça, ia até o fim. Se existisse inferno, ele descobriria, e tomaria para si. Ditaria outras regras, se houvesse alguma. Distribuiria funções e encargos. Dominaria, conquistaria. O inferno seria seu. De papel passado. Bateria fotos. Registraria. Diria ao mundo: é meu, sem importar o custo ou os meios, pois assim sempre agiu. 

Napoleão (que como todos sabem organizou a maior excursão científica do mundo moderno, ao visitar o Egito em 1799) teria espasmos, dores infindáveis e, até mesmo, alergia visceral, acaso assistisse a grandiosidade épica da expedição do o homem mais rico de todos os tempos. Milhares de pessoas, seguidores sequiosos por participar daquilo que fora apelidada jubilosamente como sendo a Grande Expedição. Sim, o Corso, como era conhecido o general francês, sentiria condoídos remorsos por não viver nos mesmos dias daqueles do Senhor da Riqueza. Certamente o imperador suplicaria por participar.

Deixando mulher, filhos e outros parentes à frente dos seus negócios, ele e sua Grande Expedição partiram sob os olhos e a curiosidade do mundo. Descobriria o inferno? Alcançaria seu intento? Para o grande milionário isso era ponto de honra, e somente cessaria quando, enfim, concluísse a obra, a missão de sua vida.

No primeiro lugar inexplorado onde chegou, tudo era maravilhoso. Lindas florestas encantavam os olhos, repletas de diversidade de espécies. Fauna e flora exuberantes. Algo saído do mais robusto pensamento lírico. Parcela considerável dos que o seguiam entenderam que ali deveria ser um lugar para se ficar, um local a ser explorado e abandonaram a caravana. Ali nada tinha a ver com o inferno. Era, para ele, como uma das tantas propriedade que possuía. Ele entendeu a intenção dos que ficaram, iriam explorar a região, algo que ele fez a vida toda. Não os desaprovaria, até porque eram como ele, e por isso estavam na sua comitiva. Os iguais sempre andam e estão com os iguais. Essa era a máxima. Além disso, seu exército era enorme. Não sentiria falta daquelas pessoas. Assim,ele os deixou e seguiu adiante.

O segundo lugar que encontrou era prodigioso. Existia um povo simples, simpático e ordeiro. Gente saudável que não conhecia as doenças dos lugares onde o Senhor da Riqueza era a potestade. As mulheres eram belas e os homens fortes. E, também ali, boa parcela dos seus adeptos resolveu ficar, abandonando a sua expedição. Ele não se aborreceu e continuou com o plano traçado. Havia muito a explorar e logo, acreditava, alcançaria o inferno. Tinha tudo, faltava-lhe o inferno na sua coleção de posses.

A Grande Campanha, após longa jornada, alcançou outro lugar. Era uma terra onde existiam muitas riquezas aquíferas e minerais. Ouro, prata, esmeraldas e diamantes despencavam das paredes rochosas e rolavam para o leito de riachos, rios e lagos tão puros, como se jamais qualquer ser vivo ali tivesse estado. As maravilhas despertaram o interesse de uma enorme quantidade dos partidários do homem mais rico de todos os tempos. Houve até quem aludisse o fato de que em ali ficando, certamente a riqueza encontrada se igualaria àquela que ele possuía.

Ele sacudiu a poeira, reuniu os que permaneceram ao seu lado, e partiu. No entanto, no decorrer da jornada, enfim, se deu conta de que estava cansado. Sentia saudade das curvas da sua mulher, apesar de ter aos seus pés a mulher que quisesse, entre as que estavam na comitiva. Queria rever seus filhos, acariciar seus abundantes cabelos e contar essas aventuras. Queria voltar, mas teimava. O objetivo não tinha sido alcançado, e, recalcitrante, manteve o traçado. Precisava cumprir a meta: encontrar o inferno.

Todavia, quando rumava pelas trilhas próximas de um grande deserto, recebeu notícias vindas de sua cidade natal. Seu pai, um ancião naqueles tempos, talvez a pessoa que mais amava, convalescia e corria sério risco de morte. Não teve outro jeito. Retornaria. Cessaria o projeto. Até porque tinha se dado conta de que perdera dois terços dos seguidores no curso do seu intento.

No regresso, por onde passava, notou que muita coisa havia mudado. No lugar onde existia ouro e pedras preciosas cercada por rios límpidos e cristalinos, encontrou água suja e poluída; montanhas desbravadas, terra destruída, cobiça e assassinatos por causa da ganância despertada. No lugar onde vislumbrou a pureza humana, onde inexistiam doenças e quaisquer tipos de maldades, deu de cara com toda sorte de males, crises, brigas, pessoas adoentadas e acometidas por doenças que não conheciam,  jovens e velhos envolvidos e dominados pelo vício, pelas drogas. Ele se assustou. Mas, tão forte quanto esse impacto, foi o que o acometeu quando, na viagem de volta, passou pelo lugar das florestas antes abundantes, encontrando, em vez de frondosas árvores e incontáveis espécies animais, apenas desolação e desertificação.

Algo sacudiu sua alma. Precisava retornar mais rapidamente. E assim o fez. Ao chegar, em primeiro lugar, encontrou os filhos. Ao vê-los, desesperou-se. Estavam  diferentes. Doentes, drogados. Buscou a mulher, e a descobriu no pior dos momentos, vendo-a com o amante na sua própria cama. E o pior, por mais veloz que tentou ser para retornar, não chegou a tempo para rever o pai ainda vivo. Nem isso. Nem o enterro.Nem a cerimônia de cremação para prestar uma derradeira homenagem.

Jogou-se ao chão e prostrado chorou. Enfim, havia descoberto o inferno.

Sou J. Marins, escritor, jornalista, professor, sociólogo e juiz federal do trabalho. Co-fundador do MOVLIBER, o Movimento Libertologia

Veja o site: www.movliber.org
 
Essa crônica faz parte do livro CIÊNCIA DA LIBERDADE de J. Marins

















Comentários

Postagens mais visitadas